Thursday, 31 July 2008

Essa palavra que é só nossa

Andando por Covent Garden, observo a chuva caí e o céu pintado de cinza me faz pensar que há tempos não presto atenção no que é sutil e torna os nossos dias mais leves. Hoje, o festival de guarda-chuvas é o meu alvo, a sua mutiplicidade de cores e donos desatentos se esbarrando, em caminhos curtos e estreitos, refugiando-se dos pingos que insistem em soltar-se do céu. As poças d’água são motivos para pequenos saltos, cortando o caminho e apressando o passo de um alguém sem destino pré-definido.

Vou-me entre a multidão com um desejo de estar há alguns milhares de quilômetros de distância, do outro lado do oceano, naquele país que chamo de meu. E não me sobra muito de lá. Passo a praça, deixo a igreja para trás, desvendam-se ruelas com pequenas galerias de arte e cruzamentos; atravesso a rua.

Uma garota de cabelos castanhos e olhos bem azuis me sorri e pede para tirar uma foto. Estou segurando um guarda-chuva preto, com a minha calça jeans molhada, um sapato encharcado e uma camisa rosa de botão. Ela pede para eu fazer a mesma expressão de dez segundos atrás. E pergunta ‘What were you thinking about?’, e eu sorrio e digo que já nem lembro. O tempo é uma armadilha para aqueles com memória exemplar, carrego sequências de imagens demais comigo. Encosto-me na vidraça de uma papelaria, ela pede para eu olhar para dentro do estabelecimento, e enquanto a sua lente move-se para frente e para trás, buscando um foco para retratar o que sinto, observo alguém desenhar uma imagem ainda indefinida, rabisco. O flash dispara, ela me entrega um cartão, vira o fundo da sua câmera digital para que eu veja a foto e conta que haverá uma exposição, a data está nas costas do cartão, apareça, você estará lá de qualquer maneira.

Contrariando qualquer previsão, a foto retrata exatamente o meu pensamento, os olhos distantes, um respirar interrompido capturado no momento exato. Fico cá com a explicação que não dei. Como se explica a palavra saudade para um alguém que não fala a nossa língua, sem perder a sua poesia, angústia, dor, relento, magnitude?

A chuva cessa, o Sol não vem. Penso no de onde surge de tempo em tempo essa necessidade de pegar um avião e embarcar para onde o céu é mais azul e há estrelas na noite, e concluo que o bom de estar cá é saber que sempre haverá um outro lugar para voltar, uma chance de mudar tudo e regressar quando chegar a hora, se um dia chegar. Que o bom de morar fora é, como diria o Hebert Vianna, “ser dois e ser dez e ainda ser um”.

Concluo também que saudade é uma palavra que nunca deveria ser definida com palavras, quando outros artifícos podem ser usados para expressá-la.


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originalmente publicado aqui.