Saturday, 10 May 2008

Auto-retrato

Auto-análise, um subterfugio que criei para levantar paredes para o meu próprio campo emocional. Compreendo cada passo que o destino dá, autoritário, sem consultar o zodíaco. Deve estar escrito em algum lugar. O meu ser ariano, as culpas, insegurança.

De onde vem este pulsar tão equivocado, o desespero? Certa vez, ouvi dizer, ou li, já nem sei, talvez tenha até mesmo inventado – eu acredito tanto no que mesmo crio – que romantismo é fraqueza. E você entende o tipo de romance a que me refiro,
Ana. Eu sei.

Lembro, assim tão vagamente, de ser uma criança carente, o único com a caixa de fotografias quase vazia. O meu pai era fotográfo profissional. Os meus irmãos tinham fotos e mais fotos. Lembro da minha mãe sempre muito ocupada, as nossas contas vencendo, a chuva que molhava a casa por dentro, de vez em quando, as bebedeiras do outro, a nossa obsessão por educação, numa rua em que a maioria das pessoas mal sabia ler direito. A imagem que nunca combinava com nós mesmos. Eu sempre tive esta consciência de ser muito inteligente e relapso. Eu sempre precisei de atenção.

Projeções de amores perfeitos, as coisas que eu lia. Uma carência tão grande. E o modo como TODOS gostavam de mim, porque eu era cool, o meu modo sempre muito diferente de ver a vida. Não percebi o naufrágio, o quanto as derrotas, os amores perdidos ficaram em mim, mas do que as vitórias e os amores conquistados.

Foi tão engraçado chegar em Madrid e andar pelas ruas de madrugada bêbado como um cachorro, sofrendo a solidão de estar só no mundo, tão perdido. Eu sei que projeto no outro um ideal que não existe, e o fundo cavado e virado ao avesso disto tudo é que eu não me dou o devido valor – foi preciso ler a Anais Nin para entender. Mas eu não consigo sacar você, de onde vem a sua lamentação, quais são os seus medos, quando você escreve tão de cima do salto, tão segura de si. E porque você tem olhos claros.

Eu me arrebento, Ana. Eu faço as besteiras mais estupidas e peço a Deus para me punir. E eu nem acredito. Eu queria, um dia, escrever um romance. Eu sempre roubei das minhas vivências para escrever. E eu descobri agora, faz pouco, que o meu bloqueio está neste distância que eu mesmo impus a mim de mim mesmo. A falta de sinceridade, as palavras medidas, o meu respirar protegido. E o romantismo morre, por não querer ser mais doce, por ter visto o mundo, a sua boca enorme e faminta, e a sua mediocridade.

Eu procurei tanto nos outros aquilo que estava em mim. E não encontrei. E eu não sei viver só. E eu não quero mais criar outras vivências, me apaixonar por qualquer chance de amor. A gente ama tanto a quem não conhece. Amor é quase sempre sinônimo de ignorância, não? Até que se torne amor. Ou costume.

Ah, Ana. Eu queria não pensar nos motivos que me atormentam nas noites de sexta-feira. Eu sempre achei que alguém iria descobrir que sou especial. De uma forma bem infantil, eu carreguei isto revestido de uma maneira mais adulta, porém com o mesmo inútil sentimento. Eu carreguei a carência do menino de seis anos de idade, a necessidade de que todos me amassem. Eu me perdi.

Estou repensando, analisando, julgando, me fechando de novo, perdendo no jogo. E é neste momento que fico mais interessante, o meu eterno blues, o jazz que toca nas manhãs de sábado no apartamento do vizinho.

Eu quero tanto um relógio de pilha, um playmobil, uma bicicleta chamada Gina. E a minha consciência diz que se deve andar para a frente, não para trás. Então eu leio isto, do Caio Fernando, e me apavoro.

‘Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”, feito Pessoa’.

E uma citação da Camille Claudel

‘Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta’.

Eu compreendo bastante o que significa esta minha fulga, este tempo todo fora, e o quanto eu perdi de mim. Rein-vento-me. Busco mais pelo que perdi de essencia, tento livrar-me da racionalidade excessiva, o saber. Tento e não consigo. E não consigo. E não consigo me livrar dos medos do menino. Do amargo da boca do adulto. E não consigo lembrar de mim
.