Acordei hoje e me abate a sensação de que algo ficou para trás. Leve, o ritmo da vida se expande como se tudo retornasse ao ponto original. Houve um tempo em que duvidei que aquele lugar no espaço significasse algo que agora quase posso tocar. Como se concreto ou real.
Com o final do mestrado, e uma tese em que precisei usar os meu dotes de design gráfico para tornar interessante, e me desculpar pela falta de pesquisa – que deve ter sido maior do que a maioria dos colegas, mas é pouco para mim – os dias ganham uma amplitude que já desconhecia. Acordei e nada havia de ser feito, razão nenhuma para estudar, ou o-que–quer-seja. Era só este pleno e amplo vazio do momento atual que nos faz pensar. E pensar é bom.
Abri o meu portifólio, abandonado numa gaveta, e reli as minhas palavras de redator de publicidade. Olhos muito atentos. E de repente, pensei na fluência das frases se conectando, o tom crescendo e variando, entre as objetividades e requerimentos de cada campanha. E pensei quase surpreso que aquilo era bom, muito bom, que eu nunca estive muito enganado sobre este dom, este instinto, esta linha de pensamentos que correm dos meu dedos para o teclado. E, claro, senti saudade de mim.
Quando era redator, uma vaga sensação de que aquilo não era trabalho, emprego, carreira, me assombrava. Parecia-me mais um contra-tempo, porque eu pouco lia sobre marketing, e eu tentava transformar os textos em algo puramente bem escrito, altamente bem escrito. E eu não sabia um quinto do que agora eu sei, e ainda assim questiono se não daria tudo no mesmo, se o foco importará mais do que a sedução em si, a sedução da idéia e sua execução.
Resolvi que quando chegar ao Brasil, imprimirei as traduções e adaptações de propganda que realizei. Montar um novo portifólio e esperar que o destino me leve daqui, talvez num navio que passe por Barbados e onde eu possa me sentir sozinho, antes de me reencontar. Andando pelas ruas de Fulham na madrugada da quinta-feira passada, compus uma oração de mim mesmo que começava assim:
Permita que eu nunca me perca de mim
Que eu não me afaste de mim
Que eu esteja comigo
Que eu me encontre todos os dias
Desde a manhãzinha até o anoitecer.
Que eu não me abandone mais
Porque eu preciso de mim comigo.
Enfim, um texto que já escapoliu da memória e que eu não passei para o papel porque eu sou um bobo. E é um texto sobre andar perdido de si.
Lendo algo que um amigo mostrou, veio-me este impulso de querer escrever de novo, de me entender e me explicar para mim mesmo em palavras. Porque eu quis mudar o texto, mover os adjetivos, fazê-lo crescer, e fechar. Eu penso que pela primeira vez me dei conta que não é tão fácil escrever, transpassar os medos, expor-se e ser profissional. Acho que foi a Clarice que disse que não queria ser escritora depois de escrever um tanto de livros. E ela se referia ao engomo, ao processo de vaidade e falta de vivência que leva alguns escritores a serem mais-do-mesmo e regurgitar. Eu tenho medo disto. E eu sou outra pessoa.
Conversando com ele, me dei conta de que eu devo ser um escritor, pelos palpites, pelo olhar, pelo instinto. Há algo em mim que sempre vai estar lá. Eu sei. Só que me recuso a escrever, pois eu não sei me expor mais, eu envelheci. Acho que foi isto, o ímpeto.
Arrumei o quarto como há tempos não, cortei o cabelo, botei a roupa toda para lavar. O quarto continua meio bagunçado. O cabelo curto pede que eu faça a barba, que resiste. E as roupas se pintaram de outra cor após serem lavadas com uma calça preta que destinturou. Preciso decidir se ganhei um guarda-roupa novo, ou perdi. A bermuda caqui pintou-se azul, a toalha amarela, de verde, a camiseta branca e rosa, de cinza e rosa. As cores da minha vida são outras, eu não as convidei, mas elas me fazem querer escrever, de novo, como se fosse preciso, como se fosse a única coisa que faz sentido agora.
Um livro sobre mim. Eu longe de mim perdido neste mundo dos outros.
(Para ler ao som de The First Time Ever I saw your face, cantada por Leona Lewis).